A importância do Luto coletivo no atual contexto brasileiro
- Isabel Torres
- 11 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Hoje, 11 de março de 2021, passado um ano de Pandemia da COVID 19, nós precisamos “chorar” os nossos 270.656 mortos: mães, avós, pais, filhos, tias, irmãos... pessoas com nomes, sobrenomes, famílias, amores. “Chorar” os nossos mortos é ser capaz de habitar a humanidade que existe em nós, é nos reconhecer enquanto coletividade. Sair ileso dessa tragédia ou diminuí-la é brutalizar-se.
Precisamos pensar sobre que destino daremos a este luto coletivo: “Choraremos” sozinhos ou juntos? Adiaremos, congelaremos o luto? Ele nos será negado ou permitido?
Não proponho aqui um mergulho sem fim na tristeza e lamentação, mas o reconhecimento de que ela é legítima e, a partir deste reconhecimento e espaço de expressão, a construção de pontes que sustentem a potência da vida.
A palavra luto é utilizada para expressar a experiência de quem perdeu uma pessoa amada, com a qual existe um vínculo de apego (Worden, 2013), ou seja, perdemos quem é importante para nós. Podem acompanhar este processo da perda os sentimentos de choque, raiva, pesar, sofrimento, fadiga, desamparo, torpor, sensação de irrealidade, culpa, saudade, solidão, sensação de presença... E em meio a todas essas possibilidades é necessário ter o espaço para sentir, liberar o pesar, para então conectar-se novamente com a afirmação da vida.
Rosana Terezinha D’orio (2010), uma profissional com a qual trabalhei durante o segundo semestre de 2020, em Projeto de Apoio psicológico no contexto da Pandemia de COVID 19/ CPF 01/DF, afirma que “o distanciamento é maior quando as pessoas observam a morte como entretenimento, vítima à vítima, de capítulo a capítulo, pela tela da TV, jornais (...) Rompidos os vínculos, rompem-se os laços de solidariedade e tolerância, brutalizam-se os comportamentos e diminuem os cuidados com os mortos e com os vivos”.
A brutalização é justamente o que temos visto com frequência nas manifestações de figuras públicas: comportamento tosco, grosseiro, agressivo ao se referir aos mortos, à sua importância, o que diminui o valor e o cuidado com a vida. A não brutalização dos mortos por sua vez, o respeito no tratamento aos mortos nos contextos públicos e privados, incorrem na não brutalização dos vivos.
Neste contexto, buscar espaços de livre expressão das emoções relativas à perda, participação em rituais de passagem coletivos ou individuais e o direito à rede de apoio social, podem atuar como fatores de proteção no processo de luto. Os rituais do luto público permitem, dentre outros aspectos, a afirmação de valores sociais, momentos que podem mobilizar forças transformadoras justamente por despertar emoções poderosas.
Os rituais seriam, então, mágicos? Não, eles carregam a função de fortalecer os laços de solidariedade neste momento desafiador. São espaços de expressão, apoio social, alívio do sofrimento, reconhecimento. Enquanto sociedade temos o direito de viver essa dor com dignidade.
Um luto não vivido, retorna para ser trabalhado...é reeditado. A historiadora Heloísa Starling, na aula magna da UFBA 2021.1, que aconteceu em 3 de março de 2021, aponta referencias histórias que nos mobilizam a pensar, como Joaquim Nabuco, que ainda no século XIX afirmava “A nossa ficção engenhosa de nação é essa: nós fomos fundados na escravidão e nos modernizamos criando uma camada superficial de valores civilizatórios, uma epiderme civilizatória, que vai recobrir a sociedade autoritária, violenta, desigual e hierárquica que foi fundada na escravidão e que não olha pra si mesma”. Fazendo o link entre a fundação do país e a atualidade, Heloísa traz uma fala de Millôr Fernandes: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.
E o que estas frases nos dizem? Nós não tratamos as chagas do nosso passado e ele está aqui reeditado, nos assombrando. É o nosso passado mostrando que está vivo. Heloísa nos alerta para perceber que o futuro mítico, previsto para o "Brasil, nação do futuro" chegou e o que ele nos revela não é agradável: uma desigualdade social crescente, genocídio, totalitarismo e um país hoje considerado ameaça para a saúde pública mundial.
Torço para que busquemos formas de vivenciar esse luto coletivamente, para que, em meio a tudo isso, através desta identidade de dor que nos toca, possamos ainda redesenhar a vida da nossa sociedade, percebendo que não há vida fora do cuidado com a coletividade.
Finalizo estes pensamentos com escritor moçambicano Mia Couto, no livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” (2003): “Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras, mas só há duas nações: a dos vivos e a dos mortos (...). É que em todo lado, mesmo no invisível, há uma porta. Longe ou perto, não somos donos, simples convidados. A vida, por respeito, requer constante licença”. (Mia Couto, 2003).
Isabel Torres é Psicóloga, integrante do Redefinir, Psicologia e cuidado em rede.
Iniciativas gratuitas que dão espaço e visibilidade ao luto coletivo:
Memorial inumeráveis.
Projeto Santinho.
REFERÊNCIAS:
-Couto, Mia (2003). Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Companha das Letras.
-D’Orio, Rosana Teresinha (2010). Histórias de fins, histórias sem fins...:um estudo sobre os rituais no processo de luto. Tese (Doutorado em Psicologia)- Pontifica Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/15939
-Starling, Heloísa (2021). O Brasil como distopia. Aula Magna UFBA 2021.
Disponível em: https://youtu.be/Kftec9QhpWY
-Worden, J. Willian (2013). Aconselhamento do luto e terapia do luto: um manual para profissionais da Saúde Mental. Quarta edição. São Paulo: Roca, 2013.
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